Estórias, memórias e factos em torno do Caladinho
Não se conhecem registos que atestem a origem do Caladinho, doce típico de Santa Maria da Feira que se celebrizou como “senha” contra o regime, mas perduram estórias e memórias que atravessaram gerações e alimentam o imaginário em torno desta iguaria discreta, mas irresistível.
Filha e neta de homens ligados ao negócio da panificação, a feirense Etelvina Araújo Leite, de 87 anos, ainda não era nascida quando o avô, João Nunes Araújo, comprou a então padaria Central, em frente à escadaria da Igreja Matriz, hoje Fotozé Óptica, mas afiança que já nessa altura – terá sido na década de 1930 – ali se produzia o Caladinho.
De facto, na edição de 12 de maio de 1934, o jornal Correio da Feira publicitava a “fabricação da acreditada fogaça com marca registada e caladinhos” num anúncio da “Central, padaria e confeitaria de João Nunes Araújo, antiga Casa Calado, fundada em 1912”. De resto, há quem defenda que o nome deste doce estará associado à família Calado e quem entenda ser mera coincidência. Entre estórias e memórias que alimentam o imaginário em torno do Caladinho, escasseiam registos escritos para uma reconstrução fiel da sua história.
Com a abertura da Confeitaria Castelo, em 1943, instalada numa antiga sapataria da Rua Direita, que já havia sido casa dos magistrados, a produção do Caladinho prosperou e continuou a ser publicitada na imprensa local.
Etelvina Araújo Leite era criança, mas recorda-se bem dos tempos em que o pai, Manuel Araújo, sócio e gerente do negócio, enviava doces, entre eles o Caladinho, em baús de madeira, transportados à cabeça por mulheres descalças, desde a então Vila da Feira até Ovar, que seguiam depois no comboio rumo a Lisboa, onde eram vendidos numa confeitaria na Alameda D. Afonso Henriques.
Em 1969, a Confeitaria Castelo passou para as mãos de Rogério Portela Almeida, que preservou o nome da casa e manteve o pasteleiro José “Sócio”, que produzia a fogaça e os doces sortidos, e guardava estórias sobre o Caladinho.
Desafiados a partilhar memórias de outros tempos, Etelvina Leite e Rogério Almeida recordaram de imediato a “menina” Adelaide, a filha mais nova de Augusto “Padeiro”, ele que terá protagonizado o célebre episódio em que se socorreu do Caladinho para justificar o silêncio que impôs aos seus ajudantes. Trata-se de Augusto Valente d’Almeida, o mesmo padeiro que ofereceu uma fogaça ao rei D. Manuel II aquando da sua visita à Vila da Feira, facto registado na edição de 28 de novembro de 1908 do jornal Correio da Feira.
Adelaide frequentou a Confeitaria Castelo já em idade madura, privando com a esposa de Rogério Almeida, altura em que partilhou a história que o pai lhe contara e que o pasteleiro José “Sócio”, que também trabalhara para Augusto “Padeiro”, tão bem conhecia: que o afamado padeiro da Rua Direita teria sido surpreendido por forças da ordem quando produzia o Caladinho com os seus ajudantes madrugada fora e, com receio de represálias, terá ordenado silêncio – “Chiu! Caladinhos!”. De imediato, o líder do grupo terá perguntado “Porque é que disse caladinhos?”, ao que o padeiro terá respondido “Porque estamos a fazer Caladinhos”.
Contam as gentes da terra que terá sido depois deste episódio – “antes da criação da PIDE”, defendem Etelvina Leite e Rogério Portela – que o Caladinho viria a celebrizar-se como “senha” contra o regime.
Diz-se em Santa Maria da Feira que, depois deste episódio, quando alguém suspeito entrava numa pastelaria ou café da vila, era habitual ouvir-se, alto e bom som, “Ora, saia um Caladinho para esta mesa!” e todos sabiam que tinham de fazer silêncio.
De preparo simples e rápida cozedura, o Caladinho é feito de ovos, açúcar e farinha, apresentando diferentes texturas, consoante a forma como a massa é moldada, a temperatura do forno e o tempo de cozedura. Redondo e achatado, acompanha bem com chá, café e vinhos. Para os apreciadores do contraste agridoce, recomenda-se uma degustação com queijos de sabor intenso, mas há quem prefira barrá-lo com manteiga.
Muitos apreciadores deste doce singular pedem o Caladinho com “pito”. Do alto dos seus 85 anos, Rogério Almeida, que durante décadas produziu esta afamada iguaria, esclarece: “Pito é húmido, não é molhado ou semilíquido, é apenas húmido”. O filho Diogo Almeida, que assumiu o negócio do pai em 2009 e deu continuidade à tradição, confirma esta preferência da clientela mais fiel pelo Caladinho com “pito”.